A vida quotidiana, apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens, sendo, subjectivamente, dotada de sentido para eles, na medida em que forma um mundo coerente (que se origina no pensamento e na acção dos mesmos) e uma realidade tomada como certa e real pelos membros da sociedade
Assim, o senso comum, contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-científicas, sobre a realidade quotidiana, que admite como certas.
A consciência apresenta-se sempre intencional, sendo, portanto, dirigida para objectos. Objectos diferentes, apresentam-se à consciência como constituintes de diferentes esferas da realidade, introduzindo tensões diferentes na nossa consciência, o que exige de cada um de nós, estarmos atentos de maneira completa, na vida quotidiana. Temos consciência de que o mundo, consiste em múltiplas realidades – quando passamos de uma realidade a outra, experimentamos a transição, causada pelo deslocamento da atenção.
Este estado de existir na realidade da vida quotidiana e de apreendê-la, é considerado por nós, normal e evidente.
A apreensão que se faz da realidade da vida diária, é a de uma realidade ordenada, ou seja, esta realidade aparece como já objectivada, estando já, constituída por uma série/ordem de objectos, antes de nós próprios contactarmos com ela.
A linguagem usada na vida quotidiana, fornece-nos as objectivações necessárias e determina a ordem em que essas mesmas objectivações adquirem sentido para nós, de tal forma a que, é através dela que a vida quotidiana adquire significado. Então, a linguagem, enche a nossa vida de objectos ordenados por meio de vocabulário, que nos permitem dotá-los de significação.
Neste sentido, a realidade da vida quotidiana, está organizada em torno do “aqui” de nosso corpo e do “agora” do nosso presente, sendo este “aqui e agora”, o “realissimum” da nossa consciência.
MAS: A realidade da vida quotidiana, não se esgota neste imediato, na medida em que experimentamos a vida quotidiana, em diferentes graus de aproximação e distância, espacial e temporalmente.
A zona da vida quotidiana que nos está mais próxima, é a que está mais acessível à nossa manipulação corporal e que está ao nosso alcance (o mundo em que actuamos/trabalhamos, a fim de mudar a realidade dele). Assim, o nosso interesse nas zonas mais distantes da vida quotidiana, é menos intenso e menos urgente, na medida em que estamos somente intensamente interessados nos objectos implicados na nossa ocupação diária – por exemplo, interessa-me a oficina, se fôr mecânico...
A realidade da vida quotidiana, apresenta-se como um mundo intersubjectivo – um mundo em que participamos, juntamente com outros homens – sendo esta intersubjectividade que diferencia a realidade da vida quotidiana, de outras realidades das quais temos consciência. Não podemos existir na vida quotidiana, sem estar continuamente em interacção e comunicação com os outros.
O conhecimento do senso comum, é o conhecimento que partilhamos com os outros nas rotinas normais, evidentes na vida quotidiana. A vida quotidiana, por sua vez, divide-se em sectores que são apreendidos rotineiramente e, outros que se nos apresentam como problemas. ASSIM: enquanto as rotinas da vida quotidiana continuarem sem interrupção, são apreendidas, como não-problemáticas. Mesmo o sector não-problemático da realidade quotidiana só o é, até novo conhecimento ou até ao aparecimento de um problema.
Comparadas à realidade da vida quotidiana, as outras realidades aparecem como campos finitos de significação, sendo a realidade da vida quotidiana, a realidade dominante que envolve as outras realidades por todos os lados.
A temporalidade, é uma propriedade intrínseca da consciência, uma vez que esta última, é sempre ordenada temporalmente.
A intersubjectividade da vida quotidiana, também tem uma dimensão temporal, ou seja, tem o seu próprio padrão do tempo, que pode ser compreendido como a intersecção entre o tempo cósmico e o calendário socialmente estabelecido – nunca podendo haver completa simultaneidade entre estes. Por exemplo, o tempo já existia antes de nascermos e continuará a existir depois de morrermos, o que torna este tempo finito para nós e pressupõe que este tempo afecte a nossa atitude face a alguma coisa, já que temos a noção que “primeiro as primeiras coisas”.
Esta estrutura temporal também se impôe à nossa biografia, na medida em que sentimos uma necessidade de nos “reorientarmos” dentro da estrutura temporal da vida quotidiana.
Na interacção social, a experiência mais importante, ocorre na situação de estar face a face com o outro, onde o outro é mais real para nós que nós próprios, porque temos a evidência directa do outro, das suas acções, atributos, etc... e, por outro lado, para que nos conheçamos, implica que voltemos a atenção sobre nós mesmos.
Estas interacções, são altamente flexíveis e desde o início que já são padronizadas/tipificadas, afectando continuamente a nossa interacção com o outro.
As tipificações da interacção social, tornam-se progressivamente anónimas, à medida que se afastam do “aqui e agora” da situação face a face, dependendo (este grau de anonimato) de um factor que passa pelo grau de interesse e grau de intimidade que se podem combinar para aumentar ou diminuir o anonimato da experiência.
A expressividade humana é capaz de objectivações, ou seja, manifesta-se em produtos da actividade humana que estão ao dispôr, tanto dos produtores, como dos outros homens, enquanto membros de um mundo comum. Um caso especial de objectivação é a significação, ou seja, a produção humana de sinais.
Os sinais agrupam-se num certo número de sistemas (como sistemas de sinais gesticulatórios, de movimentos corporais padronizados, etc...) que são objectivamente acessíveis.
A linguagem, pode ser definida como sistema de sinais vocais, sendo o mais importante sistema de sinais da sociedade humana e sendo através dela que participamos com os nossos semelhantes.
Na situação face a face, a linguagem possui uma qualidade de reciprocidade que a distingue de qualquer outro sistema de sinais.
A linguagem é flexivelmente expansiva, o permite objectivar um grande número de experiências no decurso da vida, bem como permite tipificar as experiências, permitindo agrupá-las em categorias.
Destarte, a linguagem, devido a esta capacidade de transcender o “aqui e agora”, estabelece pontes entre diferentes zonas da realidade da vida quotidiana e integra-as numa só totalidade dotada de sentido.
Por meio da linguagem, um mundo inteiro, pode ser actualizado a qualquer momento.
Então, o simbolismo e a linguagem simbólica, tornam-se componentes essenciais da vida quotidiana e da apreensão do senso comum. Isto pressupõe que o conhecimento que é transmitido de geração em geração, seja utilizável pelo indivíduo na vida quotidiana.
O nosso conhecimento na vida quotidiana, estrutura-se em termos de conveniências, cruzando-se estas mesmas conveniências, com as conveniências dos outros. Assim:
- Encontramos o conhecimento da vida quotidiana, socialmente distribuído, isto é, possuído diferentemente por diversos indivíduos.
- Não partilhamos o nosso conhecimento igualmente com todos os nossos semelhantes.
- Pode haver algum conhecimento que não partilhamos com ninguém.
No fundo, a distribuição social do conhecimento começa, com o simples facto de não conhecermos tudo o que é conhecido por nossos semelhantes e vice-versa.
Bibliografia: Berger & Luckmann (1976). “A Construção Social da Realidade”. Petrópolis: Editora Vozes, Cap. I.